O Anel Lírico
Quando, em 1922, o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, era vaiado no Teatro Municipal de São Paulo, em pleno lançamento da Semana de Arte Moderna, Rebolo Gonsales se dedicava ao futebol, chutando a bola pra frente. A patota modernista, com seus teóricos apaixonados, alguns criadores de resistência e grande corpo de baile puramente decorativo, tinhas a missão de dinamitar a pedreira. O ouro maciço, a nosso ver, viria mais tarde, exatamente na década de 30.
Na pintura, vejamos os movimentos esboçados a partir de 1930: Sociedade Pró-Arte Moderna, Clube dos Artistas Modernos, Salão de Maio, Família Artística Paulista, Grupo Santa Helena. Particularmente, não acreditamos em agrupamentos artísticos. Sua sobrevivência só se justifica na medida em que alguns de seus membros se destacam e, com referência ao Grupo Santa Helena, por exemplo, seria difícil agrupar, esteticamente, o racionalismo lírico de Volpi e o lirismo ingênuo de Rebolo. No entanto, ambos participaram do atelier montado na sala 231 do Palacete Santa Helena. Hoje, o Grupo Santa Helena começa a ser vasculhado, graças à evolução de criadores desta equipe, seja um Rebolo, seja um Bonadei, seja um Volpi. E com tais nomes e tensões criativas não há como ignorar esta união de artistas tão lúcidos e conscientes do ostracismo a que seriam relegados pela verticalidade pirotécnica dos hábitos desencadeados pela vanguarda iconoclasta.
Aprendiz de decorador
Rebolo nasceu em 1902, em São Paulo. Seu primeiro ganha-pão foi a pintura. Como muitos do seu tempo, atendendo a uma tendência do decorativismo ambiental da época, assumiu a profissão designada como aprendiz de decorador, ao qual cabia o encargo de completar as pinturas de paredes que eram inteiramente decoradas com motivos florais, um lançamento do estilo art-nouveau. Em 1926, Rebolo instalava-se profissionalmente como decorador, praticando também seriamente o futebol até 1934. Em 1936, expôs pela primeira vez no Salão Paulista de Belas Artes, no qual foi premiado.
Daí em diante sua vida profissional decorreu num ritmo lento e progressivo. Nenhum arroubo, todas as coisas no seu momento certo: I Bienal de São Paulo, Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão Nacional de Arte Moderna, Salão de Arte Moderna do Distrito Federal (Brasília), Retrospectiva no Museu de Arte Moderna (São Paulo). Apesar disso, era tratado discretamente pela crítica, mais ofuscada pelos happenings importados e pelas teorias anticonvencionais. Mas um pintor como Rebolo poderia adotar a mesma decisão do poeta Carlos Drummond de Andrade, quando disse: "Cansei de ser moderno, agora serei eterno." Ou se enquadraria muito bem na premonição de Di Cavalcanti quando escreveu nos anos 20: "O maior escândalo é não fazer escândalo."
Rebolo, em primeiro lugar, não veio para fazer escândalo, como não vieram Guignard, Pancetti, Segall e possivelmente toda a grande pintura brasileira. Não há tumulto em seu testemunho do tempo, embora haja, na fixidez do olhar de seus retratos, um desafio, uma firmeza de vigilância , uma inteligência transformada em interrogação silenciosa. Nas suas paisagens, transparece o relaxar diante da natureza, no lirismo triste e compassivo de sua luz.
Paisagem viva
Seu contato com a matéria pictórica começou ingenuamente. Hoje algumas de suas telas são riscos proustianos. Sua sensibilidade é de estender, com cuidado e gentileza, aquela tinta muito especial, talvez incompreendida num tempo de imitar cubistas e tirar coelhos de cartolas habilidosas dos mágicos europeus. Coelhos sempre temporões. Rebolo pintava da paisagem ao vivo, no início; no entanto, a força de seu depoimento distancia a matéria real desta matéria inventada, entre outono e primavera, envolta em cinzas e verdes foscos, com pátinas de um tempo nostálgico e embalsamado de calor humano.
Na memória dos amigos, Rebolo sempre foi "sensível, generoso, aberto, sereno e cheio de bondade", cantando nas horas de lazer "cantos cheios de amor e ternura, bem parecidos com suas paisagens". Este depoimento sentimental não deixa de marcar curiosamente a vereda do olho crítico, pois o que mais intriga na pintura de Rebolo (como na de Guignard) é esta transfiguração do lirismo como raízes nitidamente dramáticas e não negadas como tal. Estes artistas tiveram e têm a poderosa intuição de não desviar a naturalidade de seu registro, ao mesmo tempo em que não contiveram o arroubo lírico, diluindo muito bem o óleo do coração na fronteira do espaço. São todos plásticos, como um pássaro é pássaro, isto nenhum teórico pode transformar em rótulo para transferir. Respiram e transpiram, com paciência e fatalidade, uma urgência de pinceladas que tem a candura e o filtro do pensamento. Do pensamento deles, intransferível, repito.
É confortador verificar que obras deste calibre podem dormir no esquecimento dos outros ( já que vivem na insônia febril de si mesmas ), sem detrimento de seu valor e significado. Recordo que Vicente do Rego Monteiro reviveu em 1969, para morrer em 1971 e permanecer eterno. Lembro que Martinho de Haro, um mestre de Santa Catarina, começou a ser revisado a partir de 1972, depois de 40 anos de ostracismo voluntário.
Torna-se importante pensar nesta pintura que brota de todos os lados, num momento inesperado, quando o desatino da vanguarda, aderindo à dilaceração e quase recomendando o suicídio, aderindo a fotografia e ao audiovisual por uma total impotência com relação ao que seja criar com o óleo da carne, proclama internacionalmente sua falência. Ao mesmo tempo, emergem artistas da importância de Rebolo, porque alguma coisa de sólido e verdadeiro deve permanecer na bandeja do holocausto. Surgem das prateleiras estas paisagens insólitas, de tal forma a nossa vigilância racional se esquecera da possibilidade destes tempos. As naturezas-mortas falam de formas e geometrias pessoais, das mais rigorosas organizações compositivas.
A brecha espantosa
Por outro lado, e paralelamente, a intuição de reforçar o realismo, de dar uma visão alucinante e cruel de sua banalidade, faz nascer o híper-realismo. Mas a mola impulsiva, a brecha espantosa, é uma pintura como a de Rebolo, cuja revivescência tem o sabor de um happening, pela força e inusitado de seu timbre.
Há quem fale em período de transição da nossa paisagem, referindo-se a paisagem reboliana. Linearmente, poderíamos dizer que com pintores desta estirpe é a paisagem mesma que transita, e só se sabe deste trânsito através destes riscos e materiais sutis, como se o olho indiscreto do artista fosse o único testemunho desta mudança. Mais do que um corpo, a paisagem lhe inspira declínios de amor, âmbitos de sombra, planuras de luz sempre baixas. A paisagem é sempre o cenário do homem, talvez do primeiro homem e da primeira mulher, pois Rebolo busca a natureza ataviada e mais elementar para plantar seus redutos comunitários.
Um correr de olhos sobre as obras de sua retrospectiva mostra a pincelada ingênua e curva dos anos 30, pouco a pouco invadida de uma névoa e de uma tendência à homogeneidade de massa cromática, com discreta geometrização do casario e do tronco. Depois a raspagem, gesto de inconformismo que também autoriza um grafismo espontâneo, em seguida um retorno ao toque mágico e diluído dos primeiros tempos. Um anel lírico. Fidelidade e inquietação. Rebolo está intato, surgindo sem feridas e sem engano, para reforçar esta visão da pintura brasileira naquilo que pode ter significado dentro e fora do nosso tumultuado mundo nacional. Estamos vivendo a hora da revisão, e isto é bom, porque só revisa quem tem resíduo. Nas uvas deste vinho, rebolo é parte do melhor mosto.
Walmir Ayala
Jornal do Brasil, Rio, 1973